Farol Psicologia - Lins SP

A Farol Psicologia surgiu da idéia de criar um espaço para expor nosso trabalho como psicólogos e pensadores dos dias de hoje.
O farol é nossa inspiração, como um norteador no mar incerto, na incompletude.
Como psicólogos atuamos com as palavras, muitas vezes com o inacessível, e para isso buscamos na psicanálise, na psicologia, nas artes, na poesia, e outras "ciências" respostas, e por que não, mais perguntas.
Quem somos?

Mariana Rosa Cavalli Domingues

Psicologa Clínica e Judiciária
Psicóloga pela UEL, Especializada em Clinica Psicanalítica e Mestre em Filosofia pela UFSCar

@marircd

e
Taciano Luiz Coimbra Domingues

Psicólogo Clínico e Judiciário
Psicólogo pela UEL, Especializado em Terapia de Casal e de Família, Especializado em Terapia sexual e Mestre em Psicologia pela UNESP - Assis.


Rua José Garcia de Carvalho, 70 Lins - São Paulo,
tel.: (14) 99109 - 2016

terça-feira, 30 de novembro de 2021

PSICOTRÓPICOS, SOCIEDADE E EDUCAÇÃO ESCOLAR


 

Saudações!! A proposta de compartilhar ensaios que escrevi durante uma disciplina do doutorado continua.  Nesse ensaio relacionamos os temas contidos no título.

 

PSICOTRÓPICOS, SOCIEDADE E EDUCAÇÃO ESCOLAR

DOMINGUES, Taciano Luiz Coimbra

 

O uso de substâncias psicotrópicos pelos seres humanos não é algo recente, existem indícios de seu uso desde a antiguidade. Sodelli (2010) sublinhou relatos antropológicos de várias culturas em que o ser humano procura alterar o seu estado de consciência, utilizando vários métodos: dança, música, privação, dor e poções.

Em seu livro O mal-estar na Civilização, Freud (1996) alegou que estar consciente o tempo inteiro de tudo que acontece ao seu entorno é algo insuportável, portanto, as pessoas constroem saídas para escapar da realidade, entre elas os entorpecentes. Algo bem colocado na música Meu Caro Amigo de Chico Buarque: “muita mutreta pra levar a situação, que a gente vai levando de teimoso e de pirraça, e a gente vai tomando que também sem a cachaça, ninguém segura esse rojão”.

O III Levantamento Nacional sobre o uso de drogas pela população brasileira (BRASIL, 2017) informou que na faixa etária de 12 a 65 anos aproximadamente 8% da população brasileira já usou maconha e 3,1% cocaína. O uso de drogas legais como analgésicos opiáceos ocorreu em 0,6% e benzodiazepínicos ansiolíticos em 0,4% da população brasileira.

O uso de drogas legais e ilegais também é permeado por interesses econômicos. Leonardi e Matos (2020) comunicaram que no Brasil a indústria farmacêutica vendeu 215 bilhões em medicamentos em 2019. A indústria de Alimentos, que engloba bebidas e exportações, teve o número de vendas três vezes maior. Não podemos esquecer que a produção de drogas ilegais tem um ganho astronômico também.

O uso de fármacos vai além do uso terapêutico ou recreativo. No século XIX, o Império Britânico utilizou o grande poder de dependência do Ópio para possibilitar a entrada comercial no Império Chinês, movimento conhecido como Guerra do Ópio (DUARTE, 2005).

Os psicotrópicos são substâncias que promovem alterações no funcionamento nas vias/redes neurais e podem fomentar mudanças comportamentais, além de causar dependência. Farias e outros (2016) salienta que na sociedade ocidental existe um uso indiscriminado desses compostos com o objetivo de tratar tanto doenças físicas quanto mentais.

O uso irresponsável de psicotrópicos não é restrito a determinada faixa etária. Um bom exemplo dessa afirmação, é o uso do psicoestimulante Cloridrato de Metilfenidato, muito conhecido pelo seu nome comercial Ritalina ou Concerta (CONCEIÇÃO et al., 2019). Segundo os autores, esse composto aumenta a capacidade de concentração através da estimulação da liberação dos neurotransmissores dopamina e noradrenalina.

Esse medicamento é geralmente utilizado para o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade, o qual os sintomas são relacionados a desatenção, hiperatividade e impulsividade. Gomes, Gonçalves, Santos (2019) mencionaram que de 2007 a 2014 foi constatado o aumento 775% nas vendas do Metilfenidato. Outra informação importante revelada por esses autores é que muitas crianças estavam tomando essa medicação sem terem sido diagnosticadas com o transtorno acima citado.

 

A Ritalina, nome comercial do metilfenidato, é um psicoestimulante, prescrito majoritariamente no tratamento de crianças diagnosticadas com TDAH. Sendo um estimulante, da família das anfetaminas (como a cocaína), se consumida em certa dosagem, defende-se que auxiliaria no desempenho de tarefas escolares e acadêmicas, pois aumenta a atividade das funções executivas, aumentando a concentração, além de atuar como atenuador da fadiga (SILVA et al., 2012, p.46).

 

            O uso dessa medicação e esse transtorno estão diretamente relacionados ao ambiente escolar. Ribeiro, Viegas, Oliveira (2019) comentam que muitas vezes são os trabalhadores da educação escolar que solicitam a avaliação do aluno em relação a TDAH e o uso metilfenidato. Situação preocupante, uma vez que a escola teria que ser um espaço acolhedor para práticas alternativas de como tratar problemas de comportamento e aprendizagem; e não uma adepta a medicalização sem a busca de tratamentos alternativos, caso realmente diagnósticos sejam confirmados.

            Outra preocupação com do diagnóstico indiscriminado do TDAH e sua medicalização é a produção de estigmas, Fernandes e Denari (2017) narram que pessoas estigmatizadas são compreendidas como frágeis, impotentes, com problemas que causam desvantagem e assim são vistas de forma depreciativa pela sociedade e em desvantagem, “o aluno problema”.

            Nesse ponto, podemos refletir sobre a contradição que se instala. Ribeiro, Viegas e Oliveira (2019) esclarecem que os profissionais da educação escolar esperam que o diagnóstico de TDAH e o uso de metilfenidato auxiliará no processo ensino-aprendizagem, uma vez que esse fármaco “modularia” o comportamento do estudante. Contudo a estigmatização desse aluno poderá promover outras dificuldades que afetaram o processo de ensino-aprendizagem.

  

Referências

BRASIL, Fundação Oswaldo Cruz. III Levantamento Nacional sobre o Uso de Drogas pela População Brasileira. Rio de Janeiro, 2017.

CONCEIÇÃO, A. P. et al. Uso da Ritalina para o melhoramento acadêmico nos cursos de enfermagem e farmácia. Revista Eletrônica Interdiciplinar: Barra do Garças, v. 11, n.1, 2019..

DUARTE, D. F. Uma breve história do ópio e dos opióides. Revista Brasileira de Anestesiologia: Campinas, v. 55, n. 1, p. 135-146, 2005.

FARIAS, M. S. et al. Uso de Psicotrópicos no Brasil: Uma Revisão da Literatura. Revista Biofarm: João Pessoa, v.12, n. 4, 2016.

FERNANDES, A. P. C. S.; DENARI, F. E. Pessoa com deficiência: estigma e identidade. Educação e Contemporaneidade: Salvador, v. 26, n. 50, p. 77-89, 2017.

FREUD, S. O mal-estar na civilização [1930], In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1976.

GOMES, R. S.; GONÇALVES, L. R.; SANTOS, V. R. L. Vendas de metilfenidato: uma análise empírica no Brasil no período de 2007 a 2014. Revista Sigmae: Alfenas, v. 8, n. 2, p. 663-681, 2019.

LEONARDI, E.; MATOS, J. Industria farmacêutica tem crescimento acelerado. Tecnoblog, 2018.

RIBEIRO, M. I. S.; VIEGAS, L. S.; OLIVEIRA, E. C. O diagnóstico de TDAH na perspectiva de estudantes com queixa escolar. Revista Práxis Educacional: Vitória da Conquista, v. 15, n. 36 p. 178-201, 2019.

SILVA, A. C. P. et al. A explosão do consumo de Ritalina. Revista de Psicologia da Unesp: Assis, v. 11, n. 2, p. 44-57, 2012.

SODELLI, M. A abordagem proibicionista em desconstrução: compreensão fenomenológica existencial do uso de drogas. Revista Ciência e Saúde Coletiva: Rio de Janeiro, v. 15, n.3, p. 637-644, 2010.

sábado, 6 de novembro de 2021

LUTO E CAVALOS MARINHOS

 



 Mariana R. C. Domingues


Neste últimos tempos vivendo num contexto de pandemia mundial, falar sobre luto se tornou algo frequente. Ouvindo a canção “Vento no litoral” da Legião Urbana, faço uma interpelação entre o conceito psicanalítico de luto e a forma de abordagem da letra que fala de uma perda.

Vou iniciar apresentando brevemente o conceito de luto. Freud trabalhou sobre o assunto num texto intitulado “Luto e Melancolia” de 1917. Diante da perda de alguém, ou de um ideal é comum as pessoas apresentarem, por um tempo, um estado de desânimo, baixa auto-estima, desinteresse, transtornos alimentares, transtornos do sono e transtornos emocionais.

Neste texto Freud traça diferenças entre os conceitos de luto e melancolia, vejamos algumas; para Freud apenas a melancolia é patológica e o luto é algo natural e necessário. Entende-se que, no luto o mundo fica sem graça e na melancolia esta perda é vivida como se recaísse sobre o próprio eu. Apenas na melancolia há uma espécie de diminuição do ego. Isso ocorre por que na melancolia há uma identificação do eu com o objeto perdido e ocorre uma perda inconsciente.

A visão de funcionamento psíquico na psicanálise indica que as pessoas se ligam às outras pessoas e objetos por meio da pulsão, da libido. O que ocorre diante da perda de um objeto/pessoa amada é que uma quantidade de energia livre pode ter dificuldades em se direcionar para outros objetos. No processo de luto as pessoas podem dirigir a pulsão para outros objetos e interesses. Notamos isso quando após a morte de um ente querido ou mesmo o fim de um relacionamento, uma pessoa pode iniciar um novo hobby ou até mesmo envolver-se em algum trabalho. Na melancolia essa pulsão volta-se para o próprio eu, dificultando a capacidade de fazer vínculos.

São conceitos interessantes que norteiam o trabalho com o processamento do luto e a forma como podemos encaminhar as melancolias.

Agora vamos voltar à canção. Trata-se de uma música de autoria de Renato Russo e Dado Villa-Lobos, que foi lançada em 1991 no disco V. Vale a pena ouvir uma versão em que Cassia Eller canta junto com Renato Russo, a arte torna-se mais dramática.

Ressalto aqui que não se trata de uma interpretação da música, pois acredito que explicar obras e músicas é bem parecido com o ato de explicar uma piada, fazendo com que o riso perca seu encanto. Proponho aqui, apenas associações que foram possíveis a partir da letra musical e dos temas estudados.

No parágrafo inicial se coloca a sensação de buscar descanso, um encontro com a natureza, que permitisse o esquecimento ou o aplacar da dor. Fica evidente que a dor da perda não pode ser apagada por que os autores falam da presença interna do ser que está ausente. É disso que se trata no limiar entre o luto e a melancolia, não? A sensação descrita na música refere-se a presença da pessoa internamente, mesmo com a consciência de que ela não está mais presente. Quando o apego ao objeto perdido é muito forte pode haver uma confusão sobre quem afinal estaria perdido. Muitas vezes aquele que perdeu alguém encontra-se perdido. No verso que diz “o vento vai levando tudo embora” podemos pensar que o vento leva não somente a dor, mas também tudo a seu redor deixando a sensação de vazio.

Outro aspecto que aparece na música é o desamparo diante das situações de separações irreparáveis como aquela gerada pela morte. Quando cantado, o verso que diz “o que posso fazer” gera uma dúvida; trata-se de uma pergunta ou uma afirmação? O processo de luto coloca as pessoas diante daquilo que é irremediável. Há algo que foge do controle e que obriga o sujeito a seguir em frente. A imagem do corpo que deixa a onda bater, me parece refletir esse sentimento. Como não há o que fazer,  deixar a onda levar torna-se aquilo que é possível.

Mas nesse trecho da música logo é apresentada uma resposta: “O que posso fazer é cuidar de mim.” Bom, aqui há um norteador para o enfrentamento do luto, assim como no trecho que diz que “se entregar é uma bobagem”. O autor mostra que apesar da tristeza, precisa buscar o vento no litoral, e seguir o combinado: “lembra que o plano era ficarmos bem”.

Na travessia do luto esse olhar ao horizonte e ver mais além pode ser difícil, e o chamado pelas ondas e pelo vento, parece uma tentativa de amenizar ou levar embora aquele sofrimento. Mas, para além da letra, ouvindo a música sem notar qualquer palavra, fica evidente que o sofrimento não é levado embora pelo vento no litoral. Essa sensação de que a dor não vai acabar é descrita por pessoas nesta situação. Mas o processo de luto, mesmo que doloroso, tem um tempo e deve acabar.

Enfim, o que mais me chamou a atenção na música e me provocou na escrita deste texto foram os cavalos marinhos. É muito interessante que ao final da música apareça uma interjeição “Ei! Olha só o que eu achei”; é uma fala endereçada a alguém, e fala de um outro ser, um bicho bonito: cavalos marinhos! Por um momento, ao se encantar com os animais, o sujeito parece sair de sua dor. É um movimento que não tinha como objetivo esquecer ou desviar; é um fenômeno em que um Outro que se insere. Notadamente uma das questões que diferencia o luto da melancolia é justamente poder se dirigir a outros objetos, poder seguir em frente.

Finalizo com a letra da música:

Vento no Litoral

 

De tarde eu quero descansar, chegar até a praia e ver
Se o vento ainda está forte
E vai ser bom subir nas pedras
Sei que faço isso pra esquecer
Eu deixo a onda me acertar
E o vento vai levando tudo embora

Agora está tão longe
Vê, a linha do horizonte me distrai
Dos nossos planos é que tenho mais saudade
Quando olhávamos juntos na mesma direção

Aonde está você agora
Além de aqui dentro de mim?

Agimos certo sem querer
Foi só o tempo que errou
Vai ser difícil eu sem você
Porque você está comigo o tempo todo

E quando vejo o mar
Existe algo que diz
Que a vida continua e se entregar é uma bobagem

Já que você não está aqui
O que posso fazer é cuidar de mim
Quero ser feliz ao menos
Lembra que o plano era ficarmos bem?

Ei, olha só o que eu achei, cavalos-marinhos

Sei que faço isso pra esquecer
Eu deixo a onda me acertar
E o vento vai levando tudo embora


Segue o link da música:

 https://www.youtube.com/watch?v=4iyIzerrXjE