Farol Psicologia - Lins SP

A Farol Psicologia surgiu da idéia de criar um espaço para expor nosso trabalho como psicólogos e pensadores dos dias de hoje.
O farol é nossa inspiração, como um norteador no mar incerto, na incompletude.
Como psicólogos atuamos com as palavras, muitas vezes com o inacessível, e para isso buscamos na psicanálise, na psicologia, nas artes, na poesia, e outras "ciências" respostas, e por que não, mais perguntas.
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Mariana Rosa Cavalli Domingues

Psicologa Clínica e Judiciária
Psicóloga pela UEL, Especializada em Clinica Psicanalítica e Mestre em Filosofia pela UFSCar

@marircd

e
Taciano Luiz Coimbra Domingues

Psicólogo Clínico e Judiciário
Psicólogo pela UEL, Especializado em Terapia de Casal e de Família, Especializado em Terapia sexual e Mestre em Psicologia pela UNESP - Assis.


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sábado, 6 de novembro de 2021

LUTO E CAVALOS MARINHOS

 



 Mariana R. C. Domingues


Neste últimos tempos vivendo num contexto de pandemia mundial, falar sobre luto se tornou algo frequente. Ouvindo a canção “Vento no litoral” da Legião Urbana, faço uma interpelação entre o conceito psicanalítico de luto e a forma de abordagem da letra que fala de uma perda.

Vou iniciar apresentando brevemente o conceito de luto. Freud trabalhou sobre o assunto num texto intitulado “Luto e Melancolia” de 1917. Diante da perda de alguém, ou de um ideal é comum as pessoas apresentarem, por um tempo, um estado de desânimo, baixa auto-estima, desinteresse, transtornos alimentares, transtornos do sono e transtornos emocionais.

Neste texto Freud traça diferenças entre os conceitos de luto e melancolia, vejamos algumas; para Freud apenas a melancolia é patológica e o luto é algo natural e necessário. Entende-se que, no luto o mundo fica sem graça e na melancolia esta perda é vivida como se recaísse sobre o próprio eu. Apenas na melancolia há uma espécie de diminuição do ego. Isso ocorre por que na melancolia há uma identificação do eu com o objeto perdido e ocorre uma perda inconsciente.

A visão de funcionamento psíquico na psicanálise indica que as pessoas se ligam às outras pessoas e objetos por meio da pulsão, da libido. O que ocorre diante da perda de um objeto/pessoa amada é que uma quantidade de energia livre pode ter dificuldades em se direcionar para outros objetos. No processo de luto as pessoas podem dirigir a pulsão para outros objetos e interesses. Notamos isso quando após a morte de um ente querido ou mesmo o fim de um relacionamento, uma pessoa pode iniciar um novo hobby ou até mesmo envolver-se em algum trabalho. Na melancolia essa pulsão volta-se para o próprio eu, dificultando a capacidade de fazer vínculos.

São conceitos interessantes que norteiam o trabalho com o processamento do luto e a forma como podemos encaminhar as melancolias.

Agora vamos voltar à canção. Trata-se de uma música de autoria de Renato Russo e Dado Villa-Lobos, que foi lançada em 1991 no disco V. Vale a pena ouvir uma versão em que Cassia Eller canta junto com Renato Russo, a arte torna-se mais dramática.

Ressalto aqui que não se trata de uma interpretação da música, pois acredito que explicar obras e músicas é bem parecido com o ato de explicar uma piada, fazendo com que o riso perca seu encanto. Proponho aqui, apenas associações que foram possíveis a partir da letra musical e dos temas estudados.

No parágrafo inicial se coloca a sensação de buscar descanso, um encontro com a natureza, que permitisse o esquecimento ou o aplacar da dor. Fica evidente que a dor da perda não pode ser apagada por que os autores falam da presença interna do ser que está ausente. É disso que se trata no limiar entre o luto e a melancolia, não? A sensação descrita na música refere-se a presença da pessoa internamente, mesmo com a consciência de que ela não está mais presente. Quando o apego ao objeto perdido é muito forte pode haver uma confusão sobre quem afinal estaria perdido. Muitas vezes aquele que perdeu alguém encontra-se perdido. No verso que diz “o vento vai levando tudo embora” podemos pensar que o vento leva não somente a dor, mas também tudo a seu redor deixando a sensação de vazio.

Outro aspecto que aparece na música é o desamparo diante das situações de separações irreparáveis como aquela gerada pela morte. Quando cantado, o verso que diz “o que posso fazer” gera uma dúvida; trata-se de uma pergunta ou uma afirmação? O processo de luto coloca as pessoas diante daquilo que é irremediável. Há algo que foge do controle e que obriga o sujeito a seguir em frente. A imagem do corpo que deixa a onda bater, me parece refletir esse sentimento. Como não há o que fazer,  deixar a onda levar torna-se aquilo que é possível.

Mas nesse trecho da música logo é apresentada uma resposta: “O que posso fazer é cuidar de mim.” Bom, aqui há um norteador para o enfrentamento do luto, assim como no trecho que diz que “se entregar é uma bobagem”. O autor mostra que apesar da tristeza, precisa buscar o vento no litoral, e seguir o combinado: “lembra que o plano era ficarmos bem”.

Na travessia do luto esse olhar ao horizonte e ver mais além pode ser difícil, e o chamado pelas ondas e pelo vento, parece uma tentativa de amenizar ou levar embora aquele sofrimento. Mas, para além da letra, ouvindo a música sem notar qualquer palavra, fica evidente que o sofrimento não é levado embora pelo vento no litoral. Essa sensação de que a dor não vai acabar é descrita por pessoas nesta situação. Mas o processo de luto, mesmo que doloroso, tem um tempo e deve acabar.

Enfim, o que mais me chamou a atenção na música e me provocou na escrita deste texto foram os cavalos marinhos. É muito interessante que ao final da música apareça uma interjeição “Ei! Olha só o que eu achei”; é uma fala endereçada a alguém, e fala de um outro ser, um bicho bonito: cavalos marinhos! Por um momento, ao se encantar com os animais, o sujeito parece sair de sua dor. É um movimento que não tinha como objetivo esquecer ou desviar; é um fenômeno em que um Outro que se insere. Notadamente uma das questões que diferencia o luto da melancolia é justamente poder se dirigir a outros objetos, poder seguir em frente.

Finalizo com a letra da música:

Vento no Litoral

 

De tarde eu quero descansar, chegar até a praia e ver
Se o vento ainda está forte
E vai ser bom subir nas pedras
Sei que faço isso pra esquecer
Eu deixo a onda me acertar
E o vento vai levando tudo embora

Agora está tão longe
Vê, a linha do horizonte me distrai
Dos nossos planos é que tenho mais saudade
Quando olhávamos juntos na mesma direção

Aonde está você agora
Além de aqui dentro de mim?

Agimos certo sem querer
Foi só o tempo que errou
Vai ser difícil eu sem você
Porque você está comigo o tempo todo

E quando vejo o mar
Existe algo que diz
Que a vida continua e se entregar é uma bobagem

Já que você não está aqui
O que posso fazer é cuidar de mim
Quero ser feliz ao menos
Lembra que o plano era ficarmos bem?

Ei, olha só o que eu achei, cavalos-marinhos

Sei que faço isso pra esquecer
Eu deixo a onda me acertar
E o vento vai levando tudo embora


Segue o link da música:

 https://www.youtube.com/watch?v=4iyIzerrXjE

 

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