Neste últimos
tempos vivendo num contexto de pandemia mundial, falar sobre luto se tornou
algo frequente. Ouvindo a canção “Vento no litoral” da Legião Urbana, faço uma
interpelação entre o conceito psicanalítico de luto e a forma de abordagem da
letra que fala de uma perda.
Vou iniciar
apresentando brevemente o conceito de luto. Freud trabalhou sobre o assunto num
texto intitulado “Luto e Melancolia” de 1917. Diante da perda de alguém, ou de
um ideal é comum as pessoas apresentarem, por um tempo, um estado de desânimo,
baixa auto-estima, desinteresse, transtornos alimentares, transtornos do sono e
transtornos emocionais.
Neste texto
Freud traça diferenças entre os conceitos de luto e melancolia, vejamos algumas;
para Freud apenas a melancolia é patológica e o luto é algo natural e
necessário. Entende-se que, no luto o mundo fica sem graça e na melancolia esta
perda é vivida como se recaísse sobre o próprio eu. Apenas na melancolia há uma
espécie de diminuição do ego. Isso ocorre por que na melancolia há uma
identificação do eu com o objeto perdido e ocorre uma perda inconsciente.
A visão de
funcionamento psíquico na psicanálise indica que as pessoas se ligam às outras
pessoas e objetos por meio da pulsão, da libido. O que ocorre diante da perda
de um objeto/pessoa amada é que uma quantidade de energia livre pode ter
dificuldades em se direcionar para outros objetos. No processo de luto as
pessoas podem dirigir a pulsão para outros objetos e interesses. Notamos isso
quando após a morte de um ente querido ou mesmo o fim de um relacionamento, uma
pessoa pode iniciar um novo hobby ou até mesmo envolver-se em algum trabalho.
Na melancolia essa pulsão volta-se para o próprio eu, dificultando a capacidade
de fazer vínculos.
São conceitos
interessantes que norteiam o trabalho com o processamento do luto e a forma
como podemos encaminhar as melancolias.
Agora vamos
voltar à canção. Trata-se de uma música de autoria de Renato Russo e Dado
Villa-Lobos, que foi lançada em 1991 no disco V. Vale a pena ouvir uma versão
em que Cassia Eller canta junto com Renato Russo, a arte torna-se mais
dramática.
Ressalto aqui
que não se trata de uma interpretação da música, pois acredito que explicar
obras e músicas é bem parecido com o ato de explicar uma piada, fazendo com que
o riso perca seu encanto. Proponho aqui, apenas associações que foram possíveis
a partir da letra musical e dos temas estudados.
No parágrafo
inicial se coloca a sensação de buscar descanso, um encontro com a natureza,
que permitisse o esquecimento ou o aplacar da dor. Fica evidente que a dor da
perda não pode ser apagada por que os autores falam da presença interna do ser
que está ausente. É disso que se trata no limiar entre o luto e a melancolia,
não? A sensação descrita na música refere-se a presença da pessoa internamente,
mesmo com a consciência de que ela não está mais presente. Quando o apego ao
objeto perdido é muito forte pode haver uma confusão sobre quem afinal estaria
perdido. Muitas vezes aquele que perdeu alguém encontra-se perdido. No verso
que diz “o vento vai levando tudo embora” podemos pensar que o vento leva não
somente a dor, mas também tudo a seu redor deixando a sensação de vazio.
Outro aspecto
que aparece na música é o desamparo diante das situações de separações
irreparáveis como aquela gerada pela morte. Quando cantado, o verso que diz “o
que posso fazer” gera uma dúvida; trata-se de uma pergunta ou uma afirmação? O
processo de luto coloca as pessoas diante daquilo que é irremediável. Há algo
que foge do controle e que obriga o sujeito a seguir em frente. A imagem do
corpo que deixa a onda bater, me parece refletir esse sentimento. Como não há o
que fazer, deixar a onda levar torna-se
aquilo que é possível.
Mas nesse trecho
da música logo é apresentada uma resposta: “O que posso fazer é cuidar de mim.”
Bom, aqui há um norteador para o enfrentamento do luto, assim como no trecho
que diz que “se entregar é uma bobagem”. O autor mostra que apesar da tristeza,
precisa buscar o vento no litoral, e seguir o combinado: “lembra que o plano
era ficarmos bem”.
Na travessia
do luto esse olhar ao horizonte e ver mais além pode ser difícil, e o chamado
pelas ondas e pelo vento, parece uma tentativa de amenizar ou levar embora
aquele sofrimento. Mas, para além da letra, ouvindo a música sem notar qualquer
palavra, fica evidente que o sofrimento não é levado embora pelo vento no
litoral. Essa sensação de que a dor não vai acabar é descrita por pessoas nesta
situação. Mas o processo de luto, mesmo que doloroso, tem um tempo e deve
acabar.
Enfim, o que
mais me chamou a atenção na música e me provocou na escrita deste texto foram
os cavalos marinhos. É muito interessante que ao final da música apareça uma interjeição
“Ei! Olha só o que eu achei”; é uma fala endereçada a alguém, e fala de um outro
ser, um bicho bonito: cavalos marinhos! Por um momento, ao se encantar com os
animais, o sujeito parece sair de sua dor. É um movimento que não tinha como
objetivo esquecer ou desviar; é um fenômeno em que um Outro que se insere.
Notadamente uma das questões que diferencia o luto da melancolia é justamente
poder se dirigir a outros objetos, poder seguir em frente.
Finalizo com a letra da música:
Vento no Litoral
De tarde eu quero descansar, chegar
até a praia e ver
Se o vento ainda está forte
E vai ser bom subir nas pedras
Sei que faço isso pra esquecer
Eu deixo a onda me acertar
E o vento vai levando tudo embora
Agora está tão longe
Vê, a linha do horizonte me distrai
Dos nossos planos é que tenho mais saudade
Quando olhávamos juntos na mesma direção
Aonde está você agora
Além de aqui dentro de mim?
Agimos certo sem querer
Foi só o tempo que errou
Vai ser difícil eu sem você
Porque você está comigo o tempo todo
E quando vejo o mar
Existe algo que diz
Que a vida continua e se entregar é uma bobagem
Já que você não está aqui
O que posso fazer é cuidar de mim
Quero ser feliz ao menos
Lembra que o plano era ficarmos bem?
Ei, olha só o que eu achei,
cavalos-marinhos
Sei que faço isso pra esquecer
Eu deixo a onda me acertar
E o vento vai levando tudo embora
Segue o link da música:
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