Carnalidade
Mariana R. C. Domingues
Interessante notar que o ser humano
em seu dia dia, repleto de tarefas e finalidades muitas vezes se esquece de sua
realidade corporal. É muito comum pessoas entretidas numa atividade não se
darem conta da maneira como se acomodaram numa poltrona e depois ficar com o
corpo dolorido... Ah, aí sim vão lembrar de sua existência primordialmente
corporal.
Quando estudamos desenvolvimento
humano entendemos que há um processo longo e exigente até que o bebê humano se
reconheça em seu corpo, se aproprie dele (Dolto, 1997).
Merleau-Ponty fala de maneira
contundente a condição primeira do corpo vivo de carne e osso, num mundo visto
e que vê o tempo todo numa inter-relação constante que os funda.
Meio caminho entre o indivíduo espácio-temporal e a ideia,
espécie de princípio encarnado que importa um estilo de ser em todos os lugares
onde se encontra uma parcela sua. Nesse sentido, a carne é um ‘elemento’ do ser
(MERLEAU-PONTY, 2009).
O corpo está preso ao tecido das
coisas, diz Merleau-Ponty, ele também é sensível para elas, assim como também o
é para si.
Cada palpação de uma única mão, embora tenha seu visível e
seu tangível, está ligada à outra visão, à outra palpação, de modo a realizar
com elas a experiência de um único corpo diante de um único mundo, graças a uma
possibilidade de reversão, de reconversão de sua linguagem na delas,
possibilidade de reportar e revirar segundo a qual o pequeno mundo privado de
cada um não se justapõe àquele de todos os outros, mas é por ele envolvido,
colhido dele, constituindo, todos juntos, Sentiente em geral, diante de um Sensível
em geral. Ora, essa generalidade que faz a unidade de meu corpo, porque não se
abriria elas a outros corpos? [...]. Porque não existiria a sinergia entre
diferentes organismos, já que é possível no interior de cada um? (MERLEAU-PONTY, 2009).
Assim o corpo está no mundo e faz
parte dele num complexo vívido e dinâmico. Neste sentido, me faz pensar no
momento atual em que vivemos com tantos encontros virtuais em que as pessoas
estão diante de câmeras conversando com outros em outro local no mundo, rodeado
de coisas que não vemos. Não se compartilha o que está a diante dos olhos de
quem olha para a câmera. A experiência carnal de habitar um espaço
compartilhado não ocorre. Tivéssemos uma câmera girando incessantemente em 360
graus teríamos uma ideia de onde o outro está inserido e visse versa. Mesmo
assim não seria compartilhado. E o pior de tudo é que apenas deixa explícito o
fato de que não sabemos mesmo de como é viver no corpo e na realidade do outro.
Quando Merleau-Ponty aponta a não
delimitação dos limites do corpo, no sentido de que fazemos parte de um mundo
interligado e comunicado, novamente a situação da pandemia nos coloca a frontal
verdade de estar num mesmo planeta respirando na mesma atmosfera passível de
uma contaminação global.
Nós nos colocamos tal como o homem natural, em nós e nas coisas, em nós e no outro, no ponto onde por uma espécie de quiasma, tornamo-nos os outros e tornamo-nos mundo (MERLEAU-PONTY, 2009).
Para finalizar cito uma artista nacional
Adriana Varejão, que traz em sua obra a crueza e violência de nossa colonização
em diversas obras como nesta a seguir, titulada Losango, 1997.
Na coleção “Grandes pintores brasileiros”, há um trecho em que a artista relata como foi vivido o encontro com sua obra:
Me
voltei para Minas, para suas pequenas cidades históricas, suas montanhas,
cachoeiras e pedras, e especialmente para Ouro Preto. Aquelas igrejas eram
caixas de joias que guardavam complexas e fascinantes joias carnívoras, capazes
de ingerir qualquer elemento alheio, fragmentos dispersos, acumulando-os,
deformando-os e integrando-os ao seu universo sagrado (Moraes, M. 2013, p. 20).
Outras obras da artista tratam da
sexualidade e exploram a crueza do ser encarnado literalmente. Moraes (2013)
afirma que o trabalho da artista desde o início vem marcado pela presença de
dois elementos recorrentes: o azulejo (alusão aos colonizadores europeus) e a
carne – claramente anedótica, teatralizada, numa violência muitas vezes
chocante de um realidade vivida intimamente por todos – ser corpo.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
DOLTO.
F. Quando surge a criança. Campinas:
Ed. Papiros, 1997.
MERLEAU-PONTY M. O visível
e o invisível. São Paulo: Perspectiva, 2009.
MORAES, M. Adriana Varejão. Coleção Folha. Grandes Pintores Brasileiros. São
Paulo: Instituto Itau Cultural, 2013.
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